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“Não vi os seus primeiros passos, tampouco ouvi as suas primeiras palavras. Não vi você trocar os dentinhos de leite (…) nem ir pela primeira vez à escola. Não contei histórias para ninar teu sono, nem acalmei seu choro depois de ralar várias vezes o joelho, ao aprender a andar de bicicleta. Mas fui a primeira a te amar verdadeiramente. O meu coração é totalmente seu, meu filho!”
Essa é parte da declaração de amor pública que foi escrita por Cristina Gomes, em uma rede social, no segundo domingo de maio de 2020, quando ela celebrou pela primeira vez o Dia das Mães no papel da genitora. “Você não nasceu de meu ventre, mas foi gerado na parte mais importante de mim, no meu coração”, afirmou.
Para além de tudo que deixou de vivenciar com o filho nos primeiros anos de vida dele, a assistente social Cristina, desde que adotou Gabriel, de 10 anos, mira o futuro e todas as novas possibilidades que ele descortina. A criança entrou definitivamente na vida dela e do marido, o historiador e pesquisador Fábio do Carmo, em novembro de 2019.
Gabriel vivia, então, abrigado em uma instituição em Capelinha (Vale do Jequitinhonha/Mucuri). “Quando fiquei sabendo que eles iam me adotar, fiquei muito feliz. Teve uma época que até passei mal, de tanta ansiedade! No abrigo é bom, a gente recebe amor lá também. Mas não o tanto de amor que a gente recebe da família”, afirma o menino.
Na mesma situação em que Gabriel se encontrava há até poucos meses, existem hoje no País centenas de outras crianças e adolescentes, que acalentam o sonho de deixar para trás a vida institucionalizada — com horário para tudo, dentro dos muros de uma instituição, e sem o afeto de uma família.
De acordo com dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) da Corregedoria Nacional de Justiça, em 20 de maio deste ano havia 5.060 meninos e meninas aptos à adoção, no Brasil. Na outra ponta, figuravam 36.438 pretendentes disponíveis — pessoas que sonham exercer a paternidade e a maternidade, mas que decidem aguardar às vezes por anos na fila de adoção, por optarem por adotar apenas recém-nascidos.
Essa e outras preferências — como o sexo, a cor da pele e a saúde do menino ou da menina —, fazem a fila andar lentamente. Enquanto isso, os anos passam, e quanto mais o tempo escorre, mais difícil a chance de uma criança ser adotada.
É para tentar alterar esse cenário, reforçando as iniciativas para levar conscientização à sociedade sobre o tema, que foi criado o Dia Nacional da Adoção, celebrado em 25 de maio. Na semana em que é comemorada a data, tribunais de todo o País se mobilizam, naquela que é chamada de Semana Nacional de Adoção, incentivando o debate sobre o tema.
Pandemia da covid-19
A Semana Nacional de Adoção de 2020, que se iniciou no últimdo domingo (24/5), acontece em um momento inédito: em meio à pandemia provocada pelo novo coronavírus. “Mas o processo de adoção de crianças, em Minas, não parou por causa da covid-19”, afirma a desembargadora Valéria Rodrigues Queiroz, superintendente da Coordenadoria da Infância e da Juventude (Coinj) do TJMG.
“Pelo contrário, esses processos estão sendo agilizados pelos magistrados, com prioridade absoluta nos julgamentos. As varas da infância do TJMG se adaptaram e estão dando prosseguimento aos processos de adoção e às reavaliações dos acolhimentos, familiar e institucional”, explica.
Com isso, observa a magistrada, o Judiciário mineiro está seguindo a Recomendação Conjunta 1/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe sobre os cuidados a crianças e adolescentes, com medida protetiva de acolhimento no contexto da transmissão comunitária do novo coronavírus.
“Os processos de adoção estão correndo normalmente, de forma remota, ou seja, por meio de videochamadas. Quanto ao estágio de convivência, em algumas comarcas, o encontro está sendo presencial, em local aberto, com as cautelas de praxe”, esclarece a desembargadora.
De acordo com a superintendente da Coinj, neste período de pandemia foram feitas várias integrações de crianças e adolescentes à família de origem ou extensa, “com o apoio imprescindível das equipes técnicas — psicólogos e assistentes sociais — do TJMG.”
A magistrada destaca ainda que, nos últimos dois anos, a Coinj esteve à frente de várias iniciativas para incentivar a adoção. Um exemplo foi o convênio assinado com o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) para aderir ao aplicativo A.dot, que tem por objetivo ampliar as possibilidades de adoção tardia.
Além disso, a Coinj organizou uma caminhada, em parceria com o Grupo de Apoio à Adoção de Belo Horizonte (GAA/BH) e o Grupo de Apoio à Adoção de Santa Luiza (Gada), para chamar a atenção sobre o tema. Outra realização da coordenadoria foi o Seminário de Adoção Tardia, voltado para servidores, interessados no tema, organizações não governamentais, gestores de entidades de acolhimento, conselheiros tutelares e pretendentes à adoção da capital e da Região Metropolitana.
A Coinj apoiou também a campanha Apadrinhar, que visa a criar laços de afeto entre a sociedade e crianças e adolescentes que vivem em casas de acolhimento institucional ou familiar e estão na expectativa de reinserção familiar ou de adoção.
Amor de sobra
Paternidades e maternidades gestadas em corpos alheios, as adoções permitem oferecer um lar e uma família para meninos e meninas privados do convívio com a família biológica. Para quem adota, por outro lado, o gesto se revela a oportunidade da experiência do amor incondicional por alguém.
“Quando a gente fala em adoção, existe a preocupação de como será essa criança, se a gente vai dar conta. No caso da adoção tardia, há a preocupação pelo fato de a criança ser maior, já vir com uma índole. Mas em nenhum momento ficamos preocupados, pois sabemos que filho a gente não escolhe”, conta Cristina.
A assistente social revela que inicialmente, como a maioria das pessoas, pensava em adotar um recém-nascido. “Mas tudo mudou quando conhecemos o Gabriel”, derrete-se. “É uma criança extraordinária, alegre, inteligente, que tem uma facilidade enorme com o carinho”, observa o pai, Fábio.
O historiador afirma que a criação do vínculo entre o casal e o filho foi rápida e natural. “A gente escuta muitas histórias que repercutem as questões negativas, focalizam os conflitos. ‘Como a criança vai se comportar?’, ‘Que tipo de criança você quer?’ O tipo de criança que queríamos era um filho. E o Gabriel é isso: um filho”, ressalta.
Fábio avalia que, por isso, não faz sentido falar em “um tipo de criança, uma caraterística de criança para ser adotada ou um perfil social de criança”. “O Gabriel não significa um número dentro de um contexto social, dentro de uma instituição. É uma criança que precisa de amor e que tem muito amor para oferecer. Fomos privilegiados de estar recebendo o amor que ele tem”, declara.
Sem fronteiras
Como o amor não conhece fronteiras, acontece às vezes de ser por meio da adoção internacional que algumas crianças e adolescentes ganham uma família. Esse foi o caso dos irmãos brasileiros Enzo e Rafael, adotados pelos franceses Thomas e Tom Griffon, em abril de 2019, quando tinham 4 e 5 anos de idade, respectivamente.
Prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a adoção internacional é considerada medida excepcional que só pode acontecer quando já estão esgotadas todas as possibilidades de colocação da criança em família adotiva brasileira.
Além disso, o país de acolhida do menor precisa ser, assim como o Brasil, signatário da Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, de 29 de maio de 1993, conhecida como Convenção de Haia.
A adoção de Enzo e Rafael foi emblemática por romper vários preconceitos, de uma só vez: o casal é homoafetivo, os adotantes são estrangeiros, dispuseram-se a adotar os dois irmãos ao mesmo tempo e as crianças já tinham algumas páginas de suas histórias escritas quando foram adotadas.
Em Belo Horizonte, quando veio passar um tempo de convivência com os meninos — processo imprescindível para a consolidação da adoção —, Thomas expressou o sentimento que experimentava naqueles primeiros tempos de “quase pai”. “É realmente mágico! Desde o primeiro momento, eles pularam em nossos braços nos chamando de ‘papai’’”, contou Thomas, na ocasião.
Hoje, os meninos vivem na França com o casal. “A adaptação deles está indo maravilhosamente bem, e acho que isso tem a ver com o fato de que eles estavam muito preparados para a adoção. Eles se mostram realizados, aprendem tudo muito rápido e se revelam interessados em tudo”, conta o outro pai, Tom.
Tom explica que o mesmo sentimento “indescritível” de felicidade que ele e o companheiro sentiram quando conheceram as crianças, no Brasil, os invadiu quando chegaram com os filhos na França. “Mas essa felicidade foi elevada à potência máxima! Nós já nos sentíamos como pais; é como se eles estivessem desde sempre conosco”, declara.
Sobre a adoção tardia, Tom afirma reconhecer que o projeto de adoção é extremamente pessoal, e que muitas pessoas apresentam o desejo de exercer a paternidade e a maternidade desde que a criança é recém-nascida, e que ele já foi uma delas. “Depois, nas semanas, nos meses e nos anos em que meu projeto de adotar amadureceu, minhas necessidades também evoluíram”, conta.
Mas ele deixa uma mensagem para quem oscila entre esses dois desejos: adotar um recém-nascido ou uma criança mais velha. “Você não deve ter preconceitos; basta a certeza de que esse é o projeto correto. Não era o meu há cinco anos, mas as minhas necessidades mudaram, evoluíram, e hoje eu não mudaria minha vida, meu projeto e minha família por nada. Nós somos os pais mais felizes do mundo!”, conclui.
Fonte: TJMG
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